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Abuso sexual: Das ruínas do silêncio à superação

            O abuso sexual é uma das formas de violência que tem grande incidência entre crianças e adolescentes no Brasil. Infelizmente, é um fenômeno histórico e cultural que,  da antiguidade à pós-modernidade, tem se perpetuado  através de mecanismos que independem das condições socioeconômicas das sociedades ao redor do mundo.

A variedade de fatores que contribuem para a perpetuação do fenômeno da violência sexual é bastante complexa. Certamente inclui omissão de múltiplos agentes: sociedade, igreja, família e comunidades em geral.

Esta omissão tem relação direta com o silêncio, e refiro-me aqui ao silêncio à ausência de denúncia por parte dos responsáveis diretos das crianças, familiares ou pessoas próximas. E a ausência da denúncia é talvez, uma das variáveis que mais dificulta o rompimento do ciclo da violência sexual. Esse contexto silencioso precisa ser entendido, ante à leviana afirmação de que a realidade da violência sexual seria melhor combatida se os familiares das vítimas denunciassem prontamente este tipo de agressão. Isto porque, em grande maioria, há sempre algum familiar ou pessoa próxima da família figurando como agressor sexual, e isto dificulta a quebra desse silêncio.

Não se pode reduzir de forma alguma a complexidade perante todos os fatores emocionais e psicológicos presentes em uma situação de abuso sexual. Crianças e adolescentes não possuem estrutura emocional, formação e maturidade suficiente para compreender tudo o que ocorre neste contexto, e tornam-se reféns emocionais de seus abusadores.

Se as condições emocionais (medo, rancor, mágoa) contribuem para que esta violência se estabeleça de forma velada, as condições e estigmas sociais revelam o imenso desafio de  romper com o silêncio. Não é fácil, não é simples. Esta realidade demonstra muito mais a inabilidade da sociedade em prevenir, acolher e apoiar as vítimas, acima de qualquer dificuldade destas expressarem necessidade por ajuda. Se não o fazem, é porque não encontram um ambiente fortalecedor e confiável para tal.

Muito além disso, vale ressaltar que o público infanto juvenil possui características peculiares no que tange ao desenvolvimento: autonomia insuficiente para praticar a autodefesa;  compreensão limitada dos fatos, fase tenra do desenvolvimento, condições mínimas de manifestar a própria vontade, e menciono aqui especialmente, o público com necessidades especiais de ordem cognitiva e motora. Existem outros aspectos que poderiam tornar esta lista bastante extensa.

É necessário compreender amplamente os efeitos sociais gerados pelo medo, considerando que se trata de uma violência que pode somar-se à ameaça e coerção. O desconhecimento, a fragilidade na aplicação de uma jurisprudência mais rígida  em punir os agressores, a ausência de efetividade na prevenção e enfrentamento são  elementos que infelizmente contribuíram para que a violência sexual fosse negligenciada pelas autoridades em muitas culturas ao redor do mundo.

            Os elementos presentes nesta violência foram absurdamente negligenciados por todos os agentes da sociedade durante muito tempo, e a percepção distorcida em relação à agressão sexual certamente é uma das variáveis que também contribuiu e muito para a sua perpetuação.  Por muito tempo, interpretou-se como abuso sexual apenas as atividades sexuais contra crianças e adolescentes que incluíam algum tipo de conjunção carnal (com penetração digital, genital e/ou anal), ou sem penetração (toques, carícias e sexo oral). Demorou-se muito, para que as atividades que incluíam algum tipo de voyeurismo, assédio e exibicionismo fossem também consideradas como abuso sexual, ou até mesmo estupro.

 

O código penal brasileiro, art. 213, define estupro como o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.

Interpretar corretamente quais são estes atos libidinosos é uma atualização recente na legislação, e, portanto, permanecem ainda muitos desafios na questão da prevenção e enfrentamento deste tipo de violência praticada contra crianças e adolescentes.

Dados do Relatório “Global Status Report on Preventing Violence Against Children 2020 – uma parceria entre a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), apontam que no mundo, 1 bilhão, sim isso mesmo, 1 BILHÃO de crianças são afetadas por violência física, sexual ou psicológica.

Segundo o UNICEF, a cada 15 minutos uma criança ou adolescente é vítima de violência sexual no Brasil.

            Infelizmente a família é o local de maior incidência da violência contra crianças e adolescentes. Dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), revelam que no ano de 2019, foram 159 mil denúncias, devidamente registradas pelo “Disque Direitos Humanos”. Deste número absurdo, 86,8 mil são de violações de direitos de crianças ou adolescentes, um aumento de quase 14% em relação a 2018; e 11% das denúncias destas denúncias são de violência sexual contra crianças e adolescentes, o correspondente a 17 MIL OCORRÊNCIAS.    

            Considerando os dados supracitados, o abuso sexual em si se caracteriza por uma relação próxima entre vítima e abusador. Existe uma relação de confiança, proximidade, acesso e conveniência por parte do abusador. Por outro lado, uma relação baseada em confusão emocional, medo, silêncio, dúvida e insegurança por parte da vítima. Geralmente ocorre por parte de pais, tios, padrastos, irmãos ou pessoas próximas à criança.

            Como mencionado, existe uma variedade complexa de fatores que sustentam uma cultura, que no mínimo, é omissa no enfrentamento e combate da violência sexual contra crianças e adolescentes. As consequências dessa fragilidade são percebidas no crescente número de vítimas, e o cenário atual da pandemia só fez crescer esta estatística, infelizmente.

            Na individualidade de uma criança abusada sexualmente, são tantas as reações físicas, psicológicas e sociais, que é difícil mensurar como uma restauração torna-se possível. A ruptura é tão grande, que este tipo de violência tem grande peso jurídico na suspensão, e consequente perda do poder familiar.

            Uma criança abusada, é um indivíduo com direitos violados, que precisa da intervenção do estado para romper o ciclo desta violação. Esse ser humano que foi ferido muitas vezes constante e frequentemente,  precisa de ajuda, de proteção, para que a consequente ruptura deste ciclo de violações traga alívio e a possibilidade de refazer um novo caminho rumo ao conhecimento do verdadeiro amor e afeto. Não é simples.

Sem uma medida protetiva, uma criança exposta à violência sexual continua vulnerável, pois na maioria das vezes, não consegue quebrar o silêncio, e consequentemente não há como interromper a relação com o abusador. Esse silêncio é perturbador, é sombrio, confuso e nebuloso para as vítimas, e repito, crianças não possuem a capacidade ideal de discernimento do que ocorre, tampouco a força física necessária para autodefesa.

O primeiro passo para intervir e tirar uma criança abusada das mãos de seu abusador é a quebra do silêncio, por isso a denúncia é relevante. Na prevenção, é importante e educação sobre esse tema, o olhar vigilante, o ouvido atento, e principalmente, a orientação e comunicação ampla sobre este tema em todos os lugares. Seja na família, na escola, na igreja e nas comunidades em geral, o silêncio constitui fator predominante que perpetua a violência sexual e seus efeitos devastadores.

Quando uma criança abusada encontra uma rede de proteção atuante, ela encontra um caminho  possível para ressignificar sua vida. Para isso acontecer, alguém precisa dar o primeiro passo rumo à restauração dessa criança, mas não existe restauração, sem a ruptura com o abusador.  Seja um bebê, uma criança de quatro ou cinco anos, um pré-adolescente ou um adolescente rumo à maioridade. Abuso sexual é crime, e precisa ser denunciado. Nem sempre tem contato físico, mesmo assim é crime. Seja o abusador quem for, a omissão perante essa violência também é tipificada como crime na legislação brasileira.

A superação emocional das vítimas de abuso depende de uma consequente série de eventos depois da ruptura com o abusador, passando por intervenções variadas como o atendimento psicossocial, acolhimento, restauração de vínculos afetivos, seja com educadores, com família extensa ou substituta. Há fatores psicológicos individuais que contribuem para essa superação. Exemplos disso incluem a capacidade de demonstrar resiliência, a capacidade de desenvolver novos relacionamentos interpessoais, condições neuropsicológicas e afetivas marcantes e positivas que sirvam para reparar espaços cinzentos gerados pelo trauma do abuso.

Nas ruínas do silêncio impera a dor. No fortalecimento afetivo, a superação emocional se torna possível. Em ambos, a criança sempre estará acompanhada. Cabe a todos nós, à sociedade em geral,  atuar para colocar estas crianças com quem realmente pode protegê-las. Quem se omite perpetua a violência. Quem denuncia, abre caminho para a superação. Disque 100, e faça a sua parte.  

Por Willian Amaral

Psicólogo e Gestor dos Programas de Acolhimento na ACRIDAS

 

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